Por um instante, como num piscar de olhos, acordei em setembro. Finalmente o outono. Já andava farto de tanto calor. Sinto-me cada dia mais sozinho. Os musgos, que por tanto tempo me acompanham, não toleram esse calor. Ou morrem, ou partem, sabe-se lá para onde. Vão saindo, um a um. Já que podem. Eu, por outro lado, não me locomovo. Sou um ser estático, que nesta época fico a curtir a minha solidão. Por fim, distraio-me com as folhas que mudam de cor.
E olha que esses dias de solidão, em tese, sempre fazem-me bem. A essa altura a cidade recupera os seus sons, que muitos ainda chamam de barulho. Lá debaixo, sinto vir o cheiro da brisa que finalmente volta a soprar. Quem sabe alguma delas faça-me o favor de trazer meus amigos de volta. Que venham os musgos! São sempre o sinal do novo tempo.
Aí está. Mesmo a solidão, tem lá o seu lado bom. Ela nos regenera, desde que não seja para sempre. Solidão para sempre é muito triste. O «para sempre», quando não há vida, nunca acaba. E isso é assustador. É assim com os minerais. Duvidas do que estou a dizer? Pois então escute: aqui mesmo, bem aqui ao lado, eles ensinam que os minerais não tem vida, como se a vida fosse uma sucessão de acontecimentos animados. E a memória, como que fica? O que é a memória, afinal?
Já estou velho. Nem lembro mais há quanto tempo estou cá. Mas estou vivo, bem firme a segurar este espaço e toda essa terra que fica escorada em mim. Outro dia ouvi alguém dizer que “fulano é insensível! Tem um coração de pedra”. Ora essa, quanta injustiça! A humanidade esquece-se do valor das pedras. Não dão-se conta de que estamos por todos os lados. Estamos nas casas, no chão das ruas e até mesmo no adorno das joias. Sorte das pedras preciosas. Mas eu não queria ser uma delas. Prefiro estar na rua. Só assim posso assistir a paisagem e ouvir tudo o que se passa. Melhor assim do que ficar dias e dias em um porta-joias à espera de um dedo que nos leve para passear.
Mas deixa de conversa fiada. Eu quero mais é abrir meu coração. Nem que seja para provar que nós, pedras, temos sentimentos, temos memória. Guardamos tudinho! Não fosse assim, de que seriam feitas as estátuas? E os monumentos? E por falar em coração, gostava de dividir um grande medo que estou a sentir. Se a idade, para uns, torna os sentimentos mais duros, para mim é o contrário. Nesta época, já é comum ter algum movimento por aqui. Alguma reforma, alguma pintura. Enfim, preparativos para receber o ano letivo. No entanto, até agora, não vejo nada, não oiço nada. Está tudo tão calmo que chego a pensar que, ao contrário do que todos pensam, tenha eu morrido. Veja só por onde andam meus pensamentos!
Sinto-me bem. Em forma. Preocupado, é claro. Embora eu seja uma pedra, bem feminina, me identifico com o género masculino, porque sou várias. Afinal, sou um muro. O muro desta escola, centenária. Uma escola que iniciou sua história em um tempo em que as pessoas não tinham lá muita preocupação umas com as outras, quiçá com as crianças, muito menos as carenciadas. Devia ser porque as crianças morriam, muitas delas logo ao nascer. Então, imagino que os pais daqueles tempos difíceis criavam seus filhos com uma certa frieza. Tinham o coração de pedra. Ops! Que gafe. Peço desculpas! Mas é verdade. Os pais tinham resistência em se apegar aos filhos bebés, pois tinham muito medo de que a morte os buscasse tão cedo. Faz sentido, não?
Está bem. Não repare que começo um assunto e logo derivo para outro. É assim quando se tem mais de um século de vida. Mas não estou caduco, senil ou coisa que o valha. Só velho mesmo. Velho e rijo. Hei de aguentar muitos e muitos anos. Só que neste setembro, há um quê de suspense no ar. Sinto medo. Um enorme medo, de que quando chegar a época das aulas, a única revoada que veja seja a das andorinhas a voltar para o calor. Não sei como serei se o alarido das crianças der lugar a um silêncio constrangedor. Tenho medo, também, de alguém vir a chorar ao pé de mim e eu, pedra inanimada, não ter como abraçar esta pessoa. Será a confirmação do meu pranto?
Como são as coisas! Nunca imaginei que no alto de meus mais de cem anos pudesse ter esse tipo de preocupação. Foram centenas de anos que vi, começar e acabar, sempre do mesmo jeito. Lembro bem de cada novo ano. As crianças a chegar. Algumas alegres, outras assustadas. O brilho do sol a nascer – e me acordar. Quantas memórias! Mas este ano está tudo um bocadinho diferente. Há sim um ar de mistério que paira no ar. Não vejo os movimentos que já eram para estar a acontecer. E de tudo o que sinto, como se coração tivesse, é um aperto na alma, que me dá quando me vem estes pensamentos de que a escola irá encerrar.
Há muitos e muitos anos, quando me extrairam à força de uma enorme montanha, ouvi a voz da mãe Terra dizer-me que eu teria muita utilidade e que a minha transformação dar-me-ía novos horizontes. Ela estava certa. Pena é que fiquei assim, sentimental e mal acostumada. Não consigo ver o meu futuro sem o barulho gostoso daquelas crianças. Viu só, agora já sou pedra novamente, não mais um muro. É assim quando lembro das origens. É como se fosse a minha infância. Só sei dizer que as crianças são também a minha razão de viver.
Mas lá está. A infância guarda muitas memórias, muitas experiências. Tudo é novo e tudo é visto com esse olhar, o olhar da beleza. Deve ser por isso que me acostumei e não mais sei viver sem o entusiasmo das crianças. Seja como for. Não há nada que eu, uma relis pedra, nesta altura, seja capaz de fazer. Quis a natureza, com toda a sua sabedoria divina, que a minha função fosse esta. Mesmo assim, minha natureza não me impede de pensar. E por pensar, às vezes tenho pensamentos tristes. Tão tristes como este, do encerramento da Escola das Freiras.
“Como as pedras imóveis na praia eu fico ao teu lado, sem saber, dos amores que a vida me trouxe e eu não pude viver”. (Raul Seixas)