Opinião: Marcos Leite | Duas mulheres
Por Jornal Fórum
Publicado em 02/07/2025 08:00
Opinião

Houve um tempo em que as mulheres eram subjugadas aos caprichos masculinos. Tempos em que alguns homens tinham duas ou mais mulheres. Os mais conservadores agiam às escondidas. Já os «canalhas» ou os «sem-vergonha», pouco se importavam com as convenções sociais. A prova desses comportamentos está por toda parte a decorar os muros da História. Filhos fora do casamento, filmes, livros, e claro… fados. «Não venhas tarde», de Carlos Ramos, talvez seja um grande exemplo de como a vida funcionava antes do Abril. 

O tempo passou. A sociedade evoluiu. De igual forma, algumas religiões e culturas ainda toleram esses comportamentos, num sopesar entre liberdade e moralidade. Os que defendem a primeira grandeza, convivem tranquilamente com duas mulheres ao mesmo tempo. Já os moralistas, esses não. Se fazem algo, agem às escondidas. São como os canalhas de antigamente. 

Eis que na semana que passou me ocorreu uma situação, digamos, parecida com essas que eram cantadas em fados. Foi quando experimentei o que era estar com duas mulheres. Em nome da boa família e dos bons costumes (para não falar em moralidade) é bom lembrar que não se tratava, nem da minha esposa, tampouco da minha filha. Eram duas amigas e, por um instante, pude compreender um pouco sobre como agiam os canalhas. Ressalvadas as circunstâncias e proporções, tenho de concordar com eles: foi um encontro inesquecível. Tanto que me rendeu esta história. Impossível de ser mantida em sigilo, ainda mais quando acontece na vida de um escritor. Tem de virar fado! 

Se o leitor é daqueles mais lascivos, aviso desde : não posso fornecer detalhes. Preciso respeitar a moralidade e a intimidade das minhas «amigas». O que posso aqui dizer é que estive com duas mulheres. Só isso. Não eram ninfetas ou mesmo mulheres que esbanjam mais saúde do que eu. Não. Aliás, isso nem vem ao caso. Para que o leitor não fique decepcionado, posso dizer que estive com duas mulheres, digamos, bem experientes. Diria até que não foi difícil convencê-las. As mulheres costumam seguir o rastro da curiosidade. Sabendo oferecer bem, não há uma que resista, senão por problemas de agenda. E o dia era perfeito. Tão perfeito que saímos à rua os três, como quem nada teme. 

Foi num almoço. Era um dia chuvoso de verão, o que por si só já é uma raridade. Tão raro como estar com duas mulheres. O tempo estava agradável depois de dias e dias de um tórrido calor. Nos encontramos na livraria, aquela, em frente às bombas de combustível. Dalí fomos ao restaurante. Eu e as duas mulheres. Ao chegar, percebi que a garçonete me reconheceu. Discreta, preferiu não comentar nada. Afinal, não tinha nenhuma intimidade comigo. Mesmo assim, era fácil perceber sua curiosidade. Sempre que vinha à nossa mesa, transparecia aquele olhar de desconfiança. Aquele em que a cabeça move-se mas os olhos permanecem focados, com as pálpebras levemente apertadas. Um olhar bem feminino e competitivo. 

Para desfazer a curiosidade da menina, pedi logo um prato de pescada. Minhas convidadas foram menos afoitas e decidiram por dividir um prato de ovos rotos (que estava lindo) e um risoto de cogumelos. Brindamos com um vinho branco e, discretamente, estava consolidado o nosso encontro. É o máximo que posso falar, em termos de detalhes. A mais velha – que tinha lá suas razões – até ofereceu alguma resistência em estamos ali, nós três, assim, em pleno almoço. Mas como em toda a relação com mais de duas pessoas, a outra convidada insistiu, o que de certa forma ofereceu segurança ao encontro. Ademais, tinha de ser a três. Essa era a condição.  

Depois que serviram o vinho, bastou que iniciássemos a conversa para tudo ficar normal, tranquilo e íntimo. Era como se o nosso entorno não mais importasse. A presença de outras pessoas, as músicas, ou mesmo o olhar daquela rapariga que nos servia de forma gentil e elegante. Nada atrapalhava a nossa sinergia, como se estivéssemos protegidos por uma energia desconhecida. Naquela egrégora ímpar, trocamos mais que palavras, falámos de nossas exeperiências. As palavras saiam baixinho. Talvez para que as demais mesas não pudessem ouvir. Era como se um certo pudor se fizesse presente, como se estivéssemos a disfarçar nossa intimidade. A mais velha completava anos, razão de nossa reunião, mas nem mesmo um parabéns a você foi entoado. Tudo muito discreto, como requer uma boa reunião de amigos. Bons amigos. É o melhor que se faz nessa vida. 

Oitenta e um anos. Essa é a idade que a Lou (é assim que vou chamá-la) completava naquele dia. Mas o ponto alto, o clímax do nosso encontro, foi quando a Lou, um pouco envergonhada, num tom de sussurro, confessou: “essa foi a primeira vez, em toda a minha vida, que alguém me levou a um restaurante para almoçar”. Paramos de mastigar. A comida ficou presa na boca Por um instante, um breve momento, alguns segundos de um certo constrangimento se fez presente. Desta vez a linguagem não verbal não vinha da atendente de mesa. Éramos nós a entreolharmos, sem desviar a atenção de Lou, que não conseguiu esconder a emoção guardada em sua confissão. Vimos brotar suaves lágrimas, que do olhar fundo de Lou, desabrochavam como rosas brancas, numa mistura de alívio, partilha, confiança e gratidão. Muitos sentimentos em breve espaço de tempo. Era impossível não se emocionar. E ficamos os três, quiçá apaixonados pela ternura daquele momento. 

Como pode alguém passar uma vida inteira assim, sem ser notada, sem ser reverenciada. A Lou não é uma dessas mulheres comuns que andam por aí. Muito pelo contrário. É muito boa gente. Adora dar presentes. Por mais que viva sozinha, está sempre bem disposta e preocupada com os outros, especialmente aqueles que ninguém vê. Não é, portanto, o tipo de pessoa que não se socializa, que não troca experiências e que foge ao bom convívio. Tem cultura, tem histórias, além de ser muito elegante. Alguém que passou uma vida inteira a dar amor, carinho, atenção e palavras de conforto. De tanto compartilhar, talvez tenha esquecido de receber ou foi esquecida. Afinal, ninguém costuma dar prendas ao Pai Natal, não é mesmo? Mas as amizades verdadeiras são assim. São como a oração de São Francisco: “fazei que eu procure mais: consolar, que ser consolado; compreender, que ser compreendido; amar, que ser amado. Poisé dando que se recebe. Finalmente. 

Gostou deste conteúdo?
Ver parcial
Sim
Não
Voltar



Comentários
Comentário enviado com sucesso!

Chat Online