Opinião: Miguel M. Riscado | Amnésia e hipocrisia
Por Jornal Fórum
Publicado em 23/07/2025 07:39
Opinião

Não são precisas muitas palavras, nem explicações, para sabermos o que paira no ar. A maldade, o ódio e a falta de empatia dominam as intervenções políticas e públicas. Para outro dia ficará a subsunção de toda a realidade à (aparente) congénere política. Por ora fico-me pela amnésia e hipocrisia da geração saudosista, que tanto embandeira o respeitinho e esquece — rectius, escolhe esquecer — as barbaridades perpetradas pelo seu próprio povo. Afinal as origens do tratamento dado ao diferente atualmente são sistémicas e enraizadas, passadas de geração em geração, tal qual herança cultural nefasta e suja. O confronto com a realidade do passado está a olhos vistos, não sendo passível nem possível de ignorância. Talvez não apareça nos feeds minados, mas está disponível, como uma porta aberta, para deixar o conhecimento entrar. 

Estreou recentemente, na RTP, a série semanal Filhos de Tuga, de Catarina Gomes. Os breves documentários semanais visitam ex-colónias portuguesas (até agora Angola, Guiné-Bissau e Moçambique), entrevistando “filhos de tuga”. São filhos de soldados portugueses que cumpriam a sua obrigação militar nesses territórios e de mães naturais dessas zonas. A totalidade ficou esquecida pelos próprios pais, como se não existissem. Deixados para trás, frutos de uma relação a ocultar. Os casos apresentados na série demonstram relações consensuais (nem sempre foi assim e já lá chegarei). Faziam parte de uma vida dupla: a Maria Portuguesa espera e escrevia cartas ao seu namorado, na esperança do casamento aquando do seu regresso; a Maria Africana era uma esposa provisória, como um professor substituto, um verbo de encher até a hora da partida. E com esta partida ficavam todos os laços no Continente a Sul. Alguns, passados mais de 50 anos, quiseram conhecer os filhos — até então de pai incógnito, ainda que materialmente se soubesse bem que o pai era o furriel X ou o alferes Y —, outros escolheram ignorar e varrer para baixo do tapete. Assim ficaram os “filhos de tuga”, mal amados pelo pais e odiados pelos seus cidadãos, por serem a lembrança em carne e osso de um passado amargo e triste. Em Angola, para terminar, muitos eram pintados com carvão da cabeça aos pés, sendo rapado o seu cabelo liso, para não serem cortados ao meio com um catana, como lembra um dos entrevistados. A justiça de Salomão era a eliminação do colonizador — a eliminação total de qualquer resquício. Muitos se organizaram e procuram, hoje, os seus pais. Todos guardam um carinho e uma esperança terna de aceitação e de um abraço fraterno. 

Talvez estes “filhos de tuga”, pelo menos alguns, consigam um término na sua estória. Quem não conseguiu isso foram os agredidos, humilhados, violentados, detidos pela PIDE em Moçambique. A jornalista Maria José Oliveira, do Público, com base em arquivos, apenas recentemente catalogados, esquecidos, na Torre do Tombo, “montou” uma reportagem de sete partes, denominada Os Crimes da PIDE/DGS em Moçambique (1964-1974), analisando os achados, bem como o desleixo e, verdadeiramente, a falta de preocupação com a gravíssima situação vivida nessa ex-colónia — aliás demonstrados pela ordem de destruição, já após o 25 de abril, para se evitar um escândalo internacional de Direitos Humanos. Os relatos não são para estômagos fáceis, roçando o nojento, o desumano e o sádico, com a utilização dos mais diversos objetos para enxertos de porrada, incluindo cães esfomeados, e o emprego de rotinas subnormais, que dariam vómitos a qualquer pessoa minimamente sã. Não irei enumerar aqui. Sugiro a leitura atenta das partes já publicadas e das que virão. Refiro apenas a total inocência e ausência de provas da grande maioria das detenções, muitas por denúncia infundada, de pessoas pobres, analfabetas e indefesas, todas negras. Relata-se também o roubo de todos os seus bens, o levantamento de cheques do empregador e a violação de esposas que se apresentavam para tentarem obter o paradeiro do, verdadeiramente, sequestrado marido, filho, amigo... 

Não é preciso ser um génio para atingir a conclusão. Há um complexo de superioridade, racial, religioso, social, de uma estirpe nacional em relação às restantes. Só assim se pode compreender a falta de empatia e o sadismo, que culminam na desumanização do próximo. Esta categorização, criação não natural humana, ignora o óbvio (daí a brevidade da conclusão): que somos exatamente o mesmo que o nosso próximo, nem mais, nem menos.  

 

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