Nas últimas semanas a nossa região foi assolada por um macabro caso de abuso de poder e de assédio nos Bombeiros Voluntários do Fundão. Toda a nossa solidariedade está com a vítima e não pretendemos fazer qualquer aproveitamento da sua situação, mas esta ocorrência obriga a uma reflexão — reflexão, essa, que tem de passar pelo “respeitinho” que ainda existe no nosso país e pelo compadrio na defesa de alguma instituição, enlameando o verdadeiro significado de vestir uma farda. Também neste período temporal, vários militares da GNR, bem como um agente da PSP, foram acusados pelo Ministério Público de tráfico de seres humanos. O que dizer de tudo isto?
Estas situações abjetas, sem prejuízo do juízo pessoal e individual de cada interveniente, podem ser englobadas num fenómeno global de perda de qualidade das instituições. Esta situação não é nova: no século XIV, com a chegada da Peste Negra à Europa, em virtude da alta mortalidade, o clero foi extremamente assolado devido à sua tentativa de ajuda dos enfermos e pela celebração de unções. Assim, a Igreja Católica viu-se obrigada a ordenar mais pessoas, com menor critério e mais pressa, levando a um declínio da classe sacerdotal, assolada durante séculos com abusos e posturas incompatíveis com a representação divina na Terra. Alguma desta escassez, não duvidamos, ocorre até hoje, mas esta semelhança serve apenas para provar um ponto: quanto menos pessoas se prontificam para ocupar posições de (alegada) nobreza moral, maior a probabilidade desses lugares serem ocupados por indivíduos sem o brio e a postura necessários para o seu exercício. Ninguém pode ter dúvidas que hoje qualquer força de segurança (até poderia dizer qualquer profissão) tem escassez de pessoal. Significa isto que as forças de segurança e proteção não têm qualidade? Claro que não — significa apenas que estão mais permeáveis à escolha de pessoas sem as características necessárias para a assunção dessas posições. Esta menção às características necessárias, demonstra que existe um núcleo ligado, não às pessoas que exercem esses cargos, mas ao próprio cargo e à instituição em si.
A existência deste “pré-respeito” à farda, tem-se esbatido nas últimas décadas. A razão é apresentada, por vezes, como coincidente com o relativismo social e com o desrespeito das novas gerações. Não é necessariamente verdade, contudo. O desrespeito externo — que existe, não restem dúvidas — provém do desrespeito interno, de que os dois casos supracitados são apenas exemplos atuais; além destes, também o síndrome de superioridade com a vestimenta da farda de uma minoria das forças de segurança, que acredita representar a maioria, mancha a credibilidade e competência destas instituições e, por consequência — para mim ainda mais gravosamente —, dos colegas retos, sinceros, trabalhadores e corajosos que altruisticamente lutam diariamente pela segurança e paz social. Não é compreensível que um bombeiro ou agente de segurança possa, por um alegado respeito à instituição, desvalorizar as situações de abusos externos e internos; deve, sim, fazendo jus à sua farda, ostracizar, afastar e denunciar as situações concretas que — essas sim — atacam a essência destas instituições.
O respeito devido à farda só pode ser aumentado pelo respeito devido ao indivíduo. Quando a ordem destas premissas é alterada, não só se altera a dinâmica de poder — que, lembremos, vai no sentido das forças servirem a população e não no contrário —, mas perde-se o respeito pelo indivíduo e, logo depois, quase automaticamente, pela farda. O meu agradecimento só pode ir, então, para quem veste a farda por fora, mas já a traz consigo por dentro.