Opinião: António Lopes | Entre o Direito e a dignidade humana
A crise habitacional à luz do caso do Talude Militar
Por Jornal Fórum
Publicado em 30/07/2025 10:30 • Atualizado 31/07/2025 15:59
Opinião

A demolição de cerca de 60 construções ilegais no Bairro do Talude Militar, em Loures, é um dos episódios mais sensíveis e controversos da crise habitacional que se vive no nosso país. O caso, que foi mediaticamente exposto a meio deste mês, não pode, nem deve ser compreendido apenas na superficialidade dos vários vídeos difundidos nas redes sociais, nas letras gordas dos jornais ou nos soudbites promovidos pelos comentadores X, Y ou Z, num qualquer espaço televisivo. Requer, de facto, uma análise profunda, onde é imperioso cruzar as questões legais, a responsabilidade política, o drama social daqueles que ali habitam, bem como os limites inerentes à dignidade humana. 

Quando se apregoa uma sociedade democrática e plural, importa sempre compreender os factos antes de formular qualquer tipo de juízo. A meu ver, esta é uma obrigação ética de quem informa, de quem governa, mas também de quem comenta e de quem escreve. 

O terreno em causa é propriedade do Estado, sob gestão do Ministério da Defesa Nacional. Naquele local, ao longo de vários anos, foram sendo erguidas barracas e pequenas habitações informais, por famílias portuguesas e imigrantes, muitas delas em situação de grande vulnerabilidade social. Estas construções, não licenciadas, cresceram num contexto de carência habitacional crónica, marcada pela inoperância de políticas públicas de habitação acessível e pelo aumento da procura em zonas urbanas periféricas como é o caso de Loures.  

Convém referir que este problema não surgiu este mês. Como referi, ao longo de vários anos foram construídas barracas naquele local, num problema que se vai arrastando desde 1970, altura em que começaram a ser edificadas as primeiras habitações no Talude. Quem conhece o local diz que é um lugar esquecido, um lugar por resolver, sendo que, apesar do aumento das construções naquela zona, continua interditada a qualquer edificação, do ponto de vista legal. 

Foi neste cenário que, a meados deste mês, a Câmara Municipal de Loures, liderada por Ricardo Leão (PS), decidiu avançar com uma operação de demolição, tendo invocado razoes de segurança, de salubridade e de ordenamento do território. O presidente da autarquia, em declarações públicas, justificou a medida, dizendo que não é aceitável que se permita a proliferação de construções ilegais, e que deixar agravar a situação seria uma atitude profundamente irresponsável. 

Além disso, Ricardo Leão acrescentou que existiam riscos estruturais no terreno e que a autarquia prestou apoio social às famílias afetadas. O edil camarário referiu ainda que algumas das famílias que ali habitam recusaram liminarmente as soluções apresentadas pelo executivo municipal. Leão acusou ainda a comunicação social de linchamento mediático e defendeu que a Câmara a que preside agiu no estrito cumprimento da lei e daquilo que entende ser a sua missão pública. 

Até este ponto, parece estar tudo certo, a atitude da Câmara Municipal parece ter sido correta, todavia, esta versão oficial não esgota aquilo que é a complexidade de tudo aquilo que se passou. Por exemplo, a Associação Vida Justa, que representa muito daqueles habitantes, afirmou que várias famílias não foram previamente notificadas e que não lhes foi assegurada qualquer alternativa habitacional. Há, efetivamente, relatos que apontam para situações de desalojamento abrupto, com crianças a dormir em condições pouco dignas, algumas ao relento, mães solteiras a pernoitar em carros e agregados familiares inteiros sem qualquer tipo de rede de apoio mínimo garantido. Segundo a Vida Justa, a autarquia não demonstrou a sensibilidade que a situação exige nem promoveu um verdadeiro diálogo com os residentes, tendo antes optado por uma abordagem de carácter punitivo. 

O Ministério Público abriu um inquérito ao caso, após interposição de uma providência cautelar por parte dos advogados que representam os moradores. Esta foi aceite pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, o que levou à suspensão das demolições restantes. Aquilo que está em causa é uma eventual violação da Lei de Bases da Habitação, que estabelece que não pode haver demolição de habitações precárias sem a devida alternativa habitacional para os seus ocupantes. A referida lei indica ainda que a habitação deve ser tratada como um direito fundamental de todas as pessoas, sendo responsabilidade do Estado português, bem como das autarquias locais, assegurar condições dignas de alojamento, independentemente da situação legal do imóvel. 

É certo que as Câmaras Municipais têm responsabilidades muito concretas no que concerne ao ordenamento e urbanismo, mas também é verdade que, como diz Ricardo Leão, nenhuma autarquia consegue, sozinha, resolver o problema estrutural da habitação. Em Loures, há atualmente um número considerável e significativo de famílias em lista de espera por habitação social, o que ilustra bem a pressão sobre aquilo que são os recursos municipais.  Em Portugal, regista-se atualmente, e desde 2017 um mercado imobiliário sem precedentes no que concerne aos níveis de tensão, onde os preços subiram muito além daquilo que foi a evolução salarial média, onde o esforço financeiro para arrendar ou comprar casa é consideravelmente elevado. 

No caso específico de Loures, trata-se de um concelho com mais de 200 mil habitantes, com uma elevada percentagem de população imigrante, cerca de 13%, segundo os últimos Censos. Estas dinâmicas demográficas exigem, na minha perspetiva, uma resposta integrada, na qual a habitação, o apoio social, a regulação urbanística e a integração de estrangeiros se articulem devidamente. Quando tal não acontece, surgem fenómenos militares como o do Talude Militar, onde reinam soluções improvisadas, à margem da lei, mas que paradoxalmente se tornam vitais para quem nelas encontra o único meio de garantir uma habitação “digna”. 

Também me parece claro que não é possível ignorar que há riscos sérios associados à construção informal. Desde acidentes estruturais a condições sanitárias dúbias. No entanto, não se pode também defender a legalidade à custa da dignidade. É precisamente neste ponto que o caso de Loures levante um dilema ético profundo. Ao demolir casas ilegais sem assegurar as devidas alternativas, o poder público cumpre a lei mas infringe naquilo que está explanado na Constituição da República Portuguesa, no que concerne à habitação como direito fundamental.  

Não se trata, evidentemente, de legitimar a ocupação ilegal de terrenos. Trata-se sim de reconhecer que há seres humanos, como nós, que se encontram numa situação de vulnerabilidade extrema, que não podem ser tratados como números ou obstáculos administrativos. Na minha opinião, um Estado que se quer democraticamente saudável, não pode ser forte com os fracos e fraco com os fortes. 

Mas afinal o que poderia ou deveria ter sido feito? Era possível fazer algo diferente? Acredito que haverá quem pense que não haveria outra solução. Mas uma sociedade decente, com valores e princípios exige mais do que soluções fáceis. Exige ponderação, exige diálogo, exige humanismo e exige responsabilidade partilhada. O Governo deve assumir a sua quota-parte, através da criação de programas eficazes no que diz respeito ao alojamento. As autarquias, por sua vez, devem agir com firmeza mas também com empatia. Finalmente, os cidadãos devem resistir à tentação de julgar sem conhecer os factos na suta totalidade. 

O caso do Talude Militar não é apenas um episódio de âmbito local. É o espelho de um falhanço estrutural e coletivo em garantir habitação digna para todos. Enquanto esse problema persistir, estaremos sempre a construiu um terreno instável e, sobretudo, insustentável. 

 

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