Covilhã 7 de agosto de 1836.
Corria o pleito entre partes. Litigava-se em matéria de casamento.
A este tempo, os casamentos clandestinos já não levavam ao degredo para as galés, ou obrigavam as donzelas a casar com o hábito humilde de capucha ou num burel branco de carmelita calçada.
O Doutor José Joaquim Lopes da Silva, juiz ordinário da Covilhã, condecorado com o hábito de Cristo, despacha o escrivão Mello para o lugar de Caria. Vila de justiça cível que por diversas vezes afrontou o poder do Procurador-Geral da Mitra. Não têm o dever de pagar imposto à Igreja.
Haverá que pôr em depósito, capaz e decente, a Ana Jorge. Rapariga fresca e perfumosa. Como a “lavandula stoechas” dos montes de Caria. Olhos escuros de grande brilho. Era deliciosamente bem feita.
O oficial de diligências, Daniel Amorim, remove a menina virgem, com quem o suplicante pretende celebrar núpcias. Para casa de Gregório Pinto e mulher, Barbara Rita. Com a obrigação de ter a mesma recolhida com a honestidade e decência recomendada pela lei.
Jozé Nunes Xarato, do lugar do Monte Redondo, julgado de Arganil. Homem pesado, de largo ventre, gordalhufo, está contratado a casar com a filha de Domingos Jorge. Foi aldrabado no negócio. Injustamente denegado. Negociante de fazendas brancas, muito bem acreditado, com melhores cabedais. De família honesta, abastada de bens. Actualmente move grande negócio de fazendas brancas, trazendo quatro criados nas vendas. Ao juiz pede o suprimento da licença paterna.
Os advogados, Pereira de Carvalho e Almeida Saraiva, trocam argumentos processuais. Algumas injúrias. O juiz retira-lhes a palavra.
O pai da nubente alega que o Xarato, no tempo do senhor D. Miguel, era ladrão de estradas e companheiro do guerrilheiro Estalinau. Sentenciado ao degredo por cinco anos para Castro Marim. Fugiu para o Porto, de onde foi solto na ocasião da entrada do Exército Libertador naquela cidade. Continuando nos roubos como dantes. Um asno, um caloteiro.
O noivo contesta. Mal dirigido pelo advogado, responde com insultos: “A cama feita e a camisa pendurada” como se diz. Casamento prometido e tratado, com fita posta na abotoadura do noivo e pratas compradas para os esponsais. Gravame de honra e crime comum. Um canalha.
O Jozé Xarato trata de remover o depósito. Alega subornos que a lei proíbe. Na mesma vila e em casa de pessoas aonde entram os pais e parentes da noiva, que fazem todos os esforços para desviá-la do projectado casamento.
Desconfia do Simãozinho. Filho mais novo do Gregório Pinto. Frequenta o 1.º ano jurídico em Coimbra. Inteligente. Versejava nas noites quentes da Almedina. No derriço com umas serigaitas, cheirando a bafio de alcova. Grande fraseador. “Arrastava a asa” à depositada. Muita prosápia e uma figura de “menino jesus”. Sentia em si as suaves dores do primeiro amor.
O belo coração da Ana Jorge resiste aos gracejos e pilherias do futuro bacharel em leis. Não o leva a sério. Quer casar com o Xarato. É culto, dedicado, possui fartos bens, duas tias solteironas, muito ricas. Com os “pezinhos para a cova”. Dá-lhe presentes. Recorda aquele dia junto à ribeira. Deixara-se apertar suavemente. Correspondera à pressão voluptuosa. Amava-o com uma paixão profunda, quase religiosa.
A depositada é removida para casa do Bento de Souza Coutinho e Rita Joaquina, na Covilhã. Longe dos olhos pestanudos do Simãozinho. Da tentação da carne.
Pai e pretendente à noiva encontram-se. Às escondidas da Justiça. A ceia foi muito alegre, muito saboreada. Bem regada. Uma bela frangalhada com ervilhas. A taverneira, uma matronaça bojuda como uma pipa, pede a suas excelências para saírem. Passava da uma horazinha da noite. Entrelaçam as posições litigiosas. Numa travessa escura da Rua Direita, muito agarrados, a cantar o hino da carta. O Xarato abre os “cordões à bolsa”. O Domingos da vila de Caria entrega-lhe a noiva.
O escrivão lavra a informação. A virgem depositada casa com o Jozé Nunes Xarato. Na capela do Calvário em Caria. Convence a Mitra da cidade e Bispado da Guarda. Uns vintenzinhos para engordar o clero. O requerimento é lançado nos autos. O pai da Ana Jorge desiste da oposição. O juiz José Joaquim despacha favoravelmente. Com as custas a cargo do Xarato, que deu causa à lide.
Desenho e edição by Cláudia Gonçalves
