Deixar arder, dizem.
A expressão repete-se com a mesma naturalidade de quem fala do calor do verão ou da chuva que tarda em chegar.
O fogo já não choca, faz parte do calendário. Agosto já não traz apenas música pimba, finos e procissões, traz também colunas de fumo que se avistam a quilómetros.
Faz parte.
Já lá vai o tempo em que as serras eram limpas em condições.
Não era por obrigação…nem com ameaça de multas.
Já lá vai o tempo em que havia respeito pelo outro e não “malucos”, que permitem a desvalorização da gravidade de quem realmente sobre com a mente.
Ora, para isso tentariam atear fogo em dias chuvosos…
Já lá vai o tempo em que o gado era a melhor máquina de prevenção, mantendo os matos baixos e as encostas seguras.
Hoje, esquecemo-nos dos pastores.
Dos vales trabalhados.
Esquecemo-nos daqueles que subiam e desciam os montes todos os dias, como parte de uma vida dura, mas digna.
Esquecemo-nos também das crianças que corriam pelos campos, ajudavam em casa e tratavam os animais como parte da família.
Na verdade, o deixa arder, é esquecer na prática os animais que fazem das serras os seus portos de abrigo e as comunidades que fazem das aldeias, suas.
Tudo isso se perdeu entre betão, supermercados abertos até à meia-noite e a pressa de quem vive longe das serras, mas decide o seu destino.
Não fossem os profissionais que a habitam os melhores conhecedores do espaço.
O interior, outrora centro de lã, madeira, bom vinho, bom queijo e bom gado, tornou-se nota de rodapé num país que não parece entender a gravidade que se vive.
Catalogado como pobre, como inculto!
Como velho e esquecido como incómodo, quando na verdade guarda as maiores das riquezas: paisagens únicas, rios de água gelada, ar puro e jardins e praias fluviais onde o riso ainda não paga bilhete.
Limpas e respeitadas.
Catalogado ingratamente, face a um litoral cada vez mais robusto pela língua que Camões desconhece e habitado pelos que o seu interior deixam, temporariamente e não.
E então, como sempre, vem o ciclo: mais um incêndio, mais um plano de reflorestação, mais uma promessa de que “agora será diferente”. Plantar, arrancar, voltar a plantar.
Ora eucaliptos que não precisamos e carvalhos que nos falham.
Recomeçar todos os anos como quem escreve a mesma carta sabendo que nunca será enviada.
Mas o interior continua.
Jamais velho, jamais pobre.
Rico em sonhos.
Continua porque é teimoso, resiliente, porque ainda há quem não desista.
Sapadores, bombeiros, homens e mulheres da proteção civil, tantas vezes esquecidos quando não estão na televisão.
Gente que, no silêncio das serras, sabe que nestes momentos comunicar pode ser tão vital como apagar chamas.
Mais um ano, mais uns hectares.
Lá vão casas, vidas.
Ora se fossem tão caros como o metro quadrado dos grandes centros, o valor seria certamente outro.
E, ainda assim, o interior resiste.
Porque, apesar de tudo, não há fogo que consiga apagar de vez a memória de uma terra que sabe esperar.
Que prospera.
Obrigado aos que não desistem e persistem.
Porque não, não podemos deixar arder.
