Opinião: Miguel M. Riscado | Zarutska, Kirk e Gaza
Por Jornal Fórum
Publicado em 19/09/2025 10:45
Opinião

Terminaram, para muitos, as férias. É impossível, contudo, um desligamento total da realidade à nossa volta. As férias físicas e mentais são invadidas por manifestações absolutamente nefastas da espécie humana. A categorização dos seres humanos por qualquer característica inata ou escolhida, a proliferação da indiferença, da aparência como pau de medida, da supressão da verdadeira emoção, o aumento dos distúrbios de natureza mental, a banalização de comportamentos asquerosos…uma sociedade em ruína. A globalidade da cultura traz em dominó um kitsch de morte, negro. Nas últimas semanas, foi isso particularmente evidente, muito ajudado pela proliferação fácil e banal das imagens do ocorrido. Não evoluímos nada desde os apedrejamentos públicos, os coliseus, os autos de fé e as manifestações públicas de sevícias. Somos o mesmo animal de sempre, fascinado pela carnificina, pelo choque e pelo mal estar do semelhante.  

A morte da refugiada ucraniana Iryna Zarutska, no Estado americano da Carolina do Norte, foi especialmente chocante. A jovem vira-se obrigada a abandonar a pátria-mãe após a invasão russa. Emigrara para os Estados Unidos em busca da concretização do seu sonho: uma carreira nas artes plásticas. Consta que era especialmente dotada na restauração de obras e tentava continuar um vida minimamente normal, longe do conflito armado que assolava o seu país. Ao embarcar no metro, seguia mais um dia da sua vida, como a vida de todos, com tranquilidade. Tudo acabaria tristemente em segundos. Decarlos Brown, ex-condenado por assaltos à mão armada e (aparentemente) esquizofrénico, puxaria de uma faca, sem qualquer comunicação anterior com a vítima e mataria a jovem. Em segundos, num ataque de raiva, matava e continuava. As testemunhas observavam, olhavam para o lado. Iryna caía no chão, passados poucos segundos, desamparada e morta.  

Charlie Kirk, não era, ao contrário de Iryna, um rosto anónimo. Era um ativista político. Ligado à direita conservadora (há quem diga mesmo extrema-direita), mais não era que uma nova manifestação de uma nova awakening. Estas iluminações são recorrentes no panorama americano, apesar da sua história recente como nação, ligadas ao protestantismo profético. Surgia um orador dotado, fundava a sua igreja e conquistava o seu público. A Igreja de Jesus Cristo dos Santos do Últimos Dias, vulgo Mórmon, por exemplo, surgiu, com Joseph Smith, numa destas vagas. O foco, hoje, é outro. A idolatria virou-se, não para Deus, mas para o Homem. Idolatra-se um indivíduo, uma imagem, um partido, um ideal. Este filme é repetido… Charlie Kirk discursava e respondia a perguntas na Universidade do Utah, por coincidência, Estado Mórmon. Num debate sobre o uso ou não de armas, a liberdade de defesa com recurso a esses meios, foi baleado e, consequentemente, acabaria por falecer. Morreu à vista desarmada de milhares de pessoas. Muitos lamentam a sua morte. Outros celebram-na. Todo este debate demonstra uma tristeza de valores. A moral e o carácter deixaram de ter qualquer valia no prestígio de alguém. Valem o dinheiro, a oratória e a ideologia. A empatia vale pouco. Aliás, Charlie Kirk odiava a empatia e frisava-o. Como pode um cristão odiar a empatia? Deixo a pergunta. 

Kirk defendia Israel com um argumento literalista: era ali que as passagens bíblicas tomavam vida. A nova aliança bíblia é, contudo, e como um literalista protestante devia saber, universal e mais que física. Gaza continua a ser um genocídio a céu aberto. Uns condenam Israel, outros respondem com a condenação do Hamas. O povo palestiniano fica no limbo, no meio das ruínas de edifícios residenciais, entre tendas montadas à pressa. Preferimos a chacota, a doutrinação, a eliminação da realidade nua e crua pelas narrativas. A vida humana vale pouco. Tem um preço. Aliás, somos a única espécie que paga para viver neste triste planeta. 

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