Opinião: Miguel M. Riscado | A grande herança
Por Jornal Fórum
Publicado em 04/10/2025 07:35
Opinião

 

Discute-se contemporaneamente a taxação fiscal das heranças. Se o imposto se deve manter ou se deve aumentar, mas também se os testadores poderão ter mais liberdade de disposição dos bens ou se se deverá manter uma valor máximo, no fundo um tecto, até onde poderá livremente testar. Todas estas discussões são propositadas e com sentido — parece ser o equilíbrio social que as pauta. Contudo, pecam pela sua superficialidade. O equilíbrio geracional e horizontal não se baseia apenas em bens materiais, passados de geração de em geração. Ora vejamos. 

Seguramente que a materialidade dos bens tem um pendor necessário, principalmente na selva capitalista em que vivemos e estamos presos. Cada humano é marcado, tal qual vaca em matadouro, com quanto consegue ganhar, produzir ou investir. A falta de humanidade guia esta discussão e é precisamente ela que bloqueia a visão para o que verdadeiramente é herdado — lá chegarei. Contada a narrativa, é incutida a ideia do mérito como motor da sociedade. Qualquer indivíduo, independentemente da sua origem, poderá alcançar o topo da pirâmide ponziana do trabalho e do salário. Caso a sua origem seja desfavorecida, bolsas e incentivos públicos e privados colmatariam esta falha de mercado. Mas, esta narrativa é inquinada e meramente aparente. 

Primeiramente, atendamos ao esforço mental, físico e económico empregue pelo necessitado na sua formação, primeiro emprego, estabelecimento pessoal e início de vida. E, depois, comparemos ao que recebe a grande herança. 

O primeiro tem o peso do mundo nos seus ombros. A mínima falha pode implicar um retrocesso, uma queda, na escadaria. A pressão e a tensão ensurdecedoras bloqueiam a liberdade de viver uma vida cabal e com sentido. Assim, ouse o individuo sonhar um pouquinho fora da banda desenhada planeada, será apelidado de louco ou presenteado com a expressão “mais um para o desemprego”. Leva assim uma vida a pensar no futuro, nas decisões que terá que tomar, diminuindo a sua realidade a uma soma de a + b = c, ignorando as vicissitudes de uma vida normal: os acidentes de percurso, a procrastinação, a mudança de vontade. Nada disso poderá ser minimamente cogitado — caso aconteça, é o fim do projeto de vida. 

Ora, o que recebe a grande herança tem uma perspetiva e uma visão diametricamente oposta a esta. Este, ainda que tenha a pressão da dinastia, sabe que poderá escolher, optar, maxime exercer a sua liberdade. Está na vida amplamente disponível e aberto, pronto a abraçar e a ser abraçado. Leva o seu curso, o seu emprego, como um hobby, não com ócio, mas sabendo que a sua postura leve e harmónica o beneficiam — tal é a naturalidade, que nem sequer pensa nisso. O que causa isto? A grande herança. 

A grande herança é a transmissão de conhecimento, seja ele académico, profissional, técnico, mas, sobretudo, social e pessoal, de geração em geração, de grupo social em grupo social. Não se confunde com cunhas — estas são favores obscuros. A grande herança é a naturalidade de ter um amigo do pai que trabalha na área e dá uma oportunidade, de ter um irmão que abriu caminho em determinado sector, de valorizar as atividades sociais (muitas vezes vistas como extra aos que não recebem a grande herança) como local central de devoção e plenitude da vida.  

 

A grande herança não é taxável, é invisível. Mantém o equilíbrio dos grupos sociais e o convívio inter-geracional. E é gravemente ignorada pela família do necessitado: é vista como um add on, quando deveria ser o ponto central da relação social humana desde cedo.

 

Gostou deste conteúdo?
Ver parcial
Sim
Não
Voltar

Comentários
Comentário enviado com sucesso!

Chat Online