Josep Guardiola, Pep para os amigos, foi uma lenda do Barcelona nos anos 90. Treinado por Cruyff, Bobby Robson e Van Gaal, adquiriu conhecimento, construindo mentalmente um estilo próprio. Muitos outros colegas beberam, também, do conhecimento técnico, tático e físico desses mentores, como Xavi, Laurent Blanc, Frank de Boer, Lopetegui, Pizzi e Cocu, tornando-se, mais tarde, treinadores. Deste lote do mundo blaugrana sairiam mais dois treinadores de classe mundial: o colega Luis Enrique, posteriormente sucessor de Guardiola, e o tradutor de Robson, José Mourinho, posteriormente antagonista de Guardiola.
Há um futebol antes e depois de Guardiola. A posse de bola, o toque curto com tentativa de progressão constante e a liberdade total no último terço aniquilaram até a defesa mais rude e organizada. Mas esta crónica não é sobre isso. É sobre o efeito que Guardiola teve no seu mundo concreto e o que podemos aprender com isso.
Guardiola demonstrou a característica de genialidade mais importante: a não limitação. A abordagem que utilizou desconsiderou a realidade circundante, pois, para ele fazia sentido. Não basta fazer sentido, contudo; tem de funcionar. E funcionou. Funcionou por várias razões, em especial o facto de ter o melhor criador que o futebol já viu como jogador e todas as condições para triunfar. Estes factos não são fait divers. Na verdade, são o mais importante, ainda que isso não lhe retire genialidade. As nossas condições de partida para lutarmos contra o mundo importam (e muito). São vantagens ou desvantagens reais, com implicações na nossa personalidade, rigidez, força mental (e física), espectativa do futuro e obtenção de resultados. A ideia criada de que quem tem o peso da dinastia nas costas sente na pele a necessidade de triunfar é um erro crasso. Quem não tem nada a perder, tem tudo a perder, pois qualquer passo em falso antecipa uma queda astronómica. Guardiola partiu com o brilho nos olhos e com aceitação de toda a Catalunha. Não teve que batalhar internamente para impor o seu estilo. Teve a liberdade de poder errar. Não errou. Não porque não calhou, mas porque era brilhante.
Essa liberdade de poder errar marca uma diferença de mentalidade entre dois mundos: um luminoso, com ideias, sucessos, falhanços, mas com afastamento entre o que acontece e o que esse acontecimento provoca na pessoa; outro sombrio, com vida ou morte, tensão, medo e não diferenciação entre acontecimento e efeitos na pessoa. Essa falta de distanciamento, quase negação do estoicismo, perpetua um receio de genialidade. O efeito Guardiola é a negação do receio, a aplicação de uma linha de ideias, não por ato de heroísmo ou coragem, nem por imperativo, simplesmente por naturalidade e genuinidade.
O que retirar disto? Que há uma preocupação excessiva com aspetos extremamente superficiais da nova vida. Que a visualização do mundo com os óculos dos outros é limitadora. Que ter o Messi é melhor que ter o Bynia. Que o nosso sucesso também depende, e muito, de onde partimos. Mas não depende só disso. Depende da convicção com que avançamos e das vozes que a que damos atenção. Ouvir por respeito não pode ser sinónimo de interiorização imediata. Se assim fosse, Guardiola era um espelho de Cruyff, Mourinho de Robson e Luis Enrique de Van Gaal. E não o são…são muito mais que isso.