Diz-se com frequência e, até alguma nostalgia, que somos gerações privilegiadas. Crescemos a ouvir que, noutros tempos, os bailaricos eram de vez em quando, a carne só ao domingo, os pares de sapatos contavam-se pelos dedos de uma mão e a escola era luxo para quem podia.
Hoje, temos casas com wi-fi, frigoríficos cheios e diplomas pendurados em paredes, ainda que não sejam nossas.
Mas, se é verdade que o tempo nos trouxe conforto, também nos lançou para um novo tipo de dificuldade, a conquista por uma independência.
Enquanto jovens, enfrentamos um mercado diferente, o problema não é a falta de trabalho, talvez de emprego...
Mas a grande dificuldade reside na vida adulta, a criação de uma liberdade há muito idealizada por todos e defendida pela mão que nos educa.
A transição para a vida adulta, outrora simbolizada pela chave da primeira casa, hoje é frequentemente adiada e, quando possível, partilhada.
Sai-se de casa dos pais, com mais três ou quatro colegas de casa, partilha-se o chuveiro como se partilha uma renda.
E, pagasse por um quarto o que outrora seria por uma casa inteira.
A ironia é que o que hoje se paga por um quarto e uma “bela” cama de solteiro, é talvez o símbolo máximo da nossa emancipação.
E enxoval? Coisa rara da geração anterior.
A habitação nos dias de hoje, mais do que um tema de campanha, é uma ferida estrutural.
Urgem programas e surgem promessas, ora: controlo de rendas, incentivos à colocação de casas no mercado, penalizações por casas devolutas, tornou-se um thriller político.
Alugar, transformou-se num requerimento ao estado, uma tese de doutoramento envolta de burocracia.
Um verbo reservado a herdeiros, a investidores, ou a otimistas sem noção.
E os ocupas? Esses são os invisíveis convenientes. Ninguém vê, ninguém resolve.
Há mais burocracia do que casas acessíveis, mais intenções do que soluções.
Folheamos o mercado imobiliário como se estivéssemos em busca do ouro, com a mesma esperança e desespero.
O preço por metro quadrado é consultado com mais atenção do que os exames médicos.
Idêntico a uma montra de relógios Rolex, está ali, ao alcance da vista, mas longe do toque.
Nos grandes centros, e não só, os inquilinos são os patrões, afinal sustentam os senhorios com um salário inteiro ao final do mês.
Uma crise sem precedentes, empurrada pela especulação, pelo turismo e pela falta de capacidade de ordenados honestos puderem, enfim, tratar de uma habitação.
A interioridade continua a ser, para muitos, sinónimo de oportunidade negada, de menos emprego e lazer. Ao mesmo tempo, é onde ainda se consegue respirar com alguma dignidade.
A narrativa do “privilegiado” começa a esbarrar contra a realidade do “precário”.
E depois é a mítica frase do “eu na tua altura...”
Somos uma geração privilegiada, cheia de experiências e mente aberta.
Somos efetivamente sonhadores, esperançosos e contamos com mais experiências do que muitas gerações conseguem.
Mas muitos não conseguem por a primeira e arrancar. Falta a chave e rodar.
Porque não basta termos mais, se isso não nos garante autonomia nem estabilidade. E porque a geração que estudou mais, que fala mais línguas, que viaja e que vota com consciência, continua presa à casa da infância por falta de alternativa digna.
Fomos criados como sonhadores, porque se estudássemos eramos doutores e que uma caneta seria mais leve que uma pá de cimento...
Hoje, não compramos, mas temos outra forma de encarar os problemas e a vida. Somos uma geração que pensa de outra forma, mais flexível, cética e menos conformada. A nossa luta é diferente.
Não somos o problema, mas podemos fazer parte dele.
Não sabemos o valor do trabalho, porque até com ele é difícil a independência. O trabalho já não nos define talvez porque não nos sustenta.
Outros, simplesmente não pretendem saber o valor do trabalho, porque “não é mais preciso”. A vida ensinou-nos valores diferentes e agora não temos como contrariá-los. Fazemos parte.
Acreditamos que alguns valores se sobrepõem. E dizemos não com mais frequência do que sim. Trabalhar agora tem outro gosto.
Às vezes o problema poderá estar em nós.
Seremos, um dia, os velhos que contarão aos jovens do futuro como foi difícil ter casa. Diremos que o nosso luxo foi conseguir ir à faculdade, viajar, ainda que pouco. E saúde, muita saúde.
Somos verdadeiros sortudos, apenas ainda não nos demos conta.
Alugar, tornou-se uma roleta russa. Comprar, parece quase bruxaria.
Contaremos aos nossos filhos que não herdámos casas, herdámos crises. E mesmo assim, sobrevivemos com ideias, convicção e o sonho intacto.
Um teto é mais do que cimento. É dignidade. E essa, ainda estamos a tentar construir.
Mas talvez, com um pouco de sorte e mais do que promessas, possamos reescrever essa história. Temos de saber aprender a viver.
