Pegando em dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos, nomeadamente da plataforma Pordata, “em 1970, um em cada quatro portugueses (…) era analfabeto”. Contrastando com esta realidade, aquando da celebração dos 50 anos de Democracia, era lembrado que, “em 2021, a taxa de analfabetismo era de 3,1%”, o que materializava uma queda de mais de 20% do número de analfabetos. Significa isto que, no total da população portuguesa atual, mais de 10 milhões de pessoas sabem ler e escrever. Esta é uma batalha vencida a favor da qualificação e do poder crítico da população. Mas falta o passo seguinte.
Se (quase) todos sabem ler, não é claro — nem é possível quantificar — quantos sabem interpretar. A hermenêutica é a prática da interpretação de enunciados. É discutido se é uma arte, mas, durante o século XX foi aproximada à ciência, mormente a jurídica, mas com relevância na cultura, religiões e, fundamentalmente, em qualquer manifestação, escrita, verbal ou de qualquer outro tipo, humana, seja individual ou grupal. A hermenêutica não se confunde com a terminologia — esta segunda, ligada à ideia de conceptualização e, de certo modo, descrição da realidade, acaba, atualmente, por ser empregue como arma de arremesso entre “esquerda e direita”, “comunista e fascista” e outros conceitos de bolsos, seguramente perpetuados pela Ciência Política. A hermenêutica desmonta o conceito em questão, atribuindo-lhe um contexto com base em fatores reais, como a intenção, o local e a altura em que determinado termo foi usado, sendo a sua conclusão a “descoberta” (em aspas muito grandes) do significado real ou, pelo menos, possível e plausível, por trás da sua utilização.
A hermenêutica tem o seu expoente máximo na interpretação do simbolismo. Desde a pré-história que o humano é caraterizado por utilizar imagens para se expressar. Essa imagem cria um símbolo. E esse símbolo carece de interpretação. O processo é cíclico: ideia humana à criação da imagem à interpretação da imagem à resultado da interpretação — é espectável que a interpretação revele, no resultado, a ideia humana original. O estudo do simbolismo permite uma compreensão apurada do que os olhos, a priori, não vêm. E a cidade da Covilhã foi, em tempos, brindada por um mestre da interpretação do simbolismo, quer na sua própria arte, quer na observação constante da realidade circundante.
Falo, obviamente, de E. M. de Melo e Castro.
Sendo de difícil caracterização, e por qualquer tentativa limitar a sua herança, direi que foi um intelectual e, acima de tudo, um polímata. A sua arte, apesar de prima facie simples, demonstra uma profundidade e um sentido penetrante para qualquer olhar atento. Não tenho aqui tempo, nem espaço, para aprofundar a sua totalidade obra, nem teria competência, nem capacidade para o fazer. Apenas, brevemente, relembro, as suas apresentações de ideias no período do PREC — tempo esse carregado de constante simbolismo.
Sugiro, para acompanhamento visual, a fantástica reportagem de José Ernesto de Sousa, a 15 de janeiro de 1975, disponível no arquivo RTP, em que Melo e Castro aprofunda a investigação visual de duas imagens observadas por si nas suas viagens pelo país. Enriquecida pela visualização das obras do artista, a reportagem demonstra como o mesmo interpretada dois símbolos com conotação política, desconstruindo os seus elementos, criando interligações entre áreas do saber e obtendo, através da hermenêutica, as verdadeiras imagens por detrás daqueles símbolos.
Tomando a iniciativa e a pré disposição para vermos além dos nossos olhos, sigamos o exemplo de E. M. de Melo e Castro — não nos limitemos, mas tentemos perceber o sentido que os símbolos escondem, obtendo, além das imagens, o sentido da comunicação humana, fundamental na vida social e na interligação entre seres.
