Nas ciências que estudam a gestão de empresas, o ponto de rutura (break even point) representa o momento em que uma organização deixa de estar na zona de prejuízo e passa a gerar lucros. É quando tudo o que entra se iguala a tudo o que sai, para ser simplista. A partir deste ponto, com as contas «em dia», cada venda a mais contribui exclusivamente para o crescimento, com o lucro, vez que os custos fixos já estarão suportados pelas vendas anteriores. No mundo dos negócios, ultrapassar o ponto de rutura, também conhecido como ponto de equilíbrio, é como chegar ao céu e finalmente encontrar o propósito empresarial, ao menos em números. E na vida pessoal, em nossa sociedade, será que existe um “ponto de rutura”? Será que é possível saber quando sairemos da zona do inferno em direção ao tão sonhado céu?
Rousseau, filósofo iluminista do Século XVIII, dizia que «o homem nasce bom, mas a sociedade é que o corrompe». Quem nunca ouviu esta frase? Pois bem, dizia o pensador que a natureza do ser humano, desde o nascimento, era um vetor de amor, de bondade e de equilíbrio. Factores que se perdiam em razão da sociedade. Isso explica o por que os bebés são tão fofos e adoráveis. Ainda que se pareçam com os pais, são uma obra divina, fruto do amor ou simplesmente do desejo. Por esta ótica, que dificilmente conseguimos discordar, Jesus também afirmou: «vinde a mim as criancinhas, pois delas é o reino dos céus» (Mateus 19:14). Na interpretação bíblica, costumamos dizer que as crianças têm o coração puro e, portanto, são dignas de entrar no tal «reino dos céus». Mas como a retórica de Jesus era ampla, Seus ensinamentos queriam dizer que para os homens conquistarem a paz era preciso ter o coração puro como o das crianças. E isso jamais perderá a validade.
Com tanto avanço tecnológico e com um nível de conforto nunca antes experimentado pela humanidade, essa que não teve o desprivilégio de nascer em terras arrasadas, restou pouca gente preocupada com essa história de céu e inferno. Pior, os que vivem em sociedades relativamente equilibradas, como a nossa, costumam ver o mundo pelo telemóvel e dizer que Deus não existe, especialmente quando deparam-se com imagens impactantes, como as que vêm de Gaza. Somos observadores, é da nossa natureza, mas isso não dá-nos o direito de viver como crianças mimadas.
A sociedade actual parece acomodar-se na cultura niilista, o pensamento filosófico que nega acreditar que a vida deve ter um sentido e um caráter de aperfeiçoamento moral. Como resultado, temos um mar de pessoas que sequer acreditam ter ou viver uma experiência espiritual. Para muitos, o espírito é algo como o «estado de espírito», que nada mais é do que a capacidade de reconhecer se se está feliz ou não. Muito simplista. Para essa gente, mais do que isso, complica, porque é sempre complicado pensar além das fronteiras da zona de conforto.
Esse pensamento niilista contraria a tese de Teilhard de Chardin, padre francês que no início do século passado afirmava que «não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, mas seres espirituais vivendo uma experiência humana». Por não acreditarem na vida espiritual e nas limitações da experiência humana, as pessoas acabam por querer da vida apenas aquilo que satisfaz os instintos e os prazeres, o que reforça e mantém actual a teoria de Sigmund Freud.
A partir de tais premissas, principalmente do pensamento de que as crianças são puras e os homens impuros, deparamo-nos com uma incoerência. Se não com uma incoerência, com um ponto de rutura. Esta linha de raciocínio nos conduz a crer que nós, adultos, em algum momento, estragamos ou passamos a estragar as crianças. Talvez façamos isso sem sequer darmo-nos conta do resultado de nossas ações e palavras. Bom seria se fosse o contrário, se as crianças nascessem más - como são os homens - e coubesse a nós, adultos, corrigí-las. Como resultado dessa rutura, totalmente avessa à natureza humana, perpetuamos, em diversos graus de profundidade, os sentimentos de injustiça, descrença, individualismo, violência, entre outras mazelas inerentes ao comportamento, que tem na pedofilia a mais nojenta e abjeta de todas as patologias da espécie humanóide.
Se a filosofia nos diz que o homem nasce bom e que a sociedade é que o corrompe, há outros pensadores que há séculos tentam reformar esse fatalismo. Quatro séculos antes de Cristo, a célebre frase (falsamente) atribuída à Sócrates (400 aC) - «conhece-te a ti mesmo» -, considerava que o autoconhecimento era uma tarefa inerente e fundamental ao ser humano. Sem essa busca de compreensão do que é «ser» humano e de como funciona o universo, perpetuamos tudo que há de mal em nossa existência.
Ao conhecermos a nós mesmos, adquirimos mais habilidades para reconhecer nossa verdadeira identidade, o sentido de nossas vidas e, por que não dizer, «a verdade». Se para as empresas o ponto de ruptura representa, mais cedo ou mais tarde, a vida ou morte de uma organização, o céu ou o inferno no mundo dos negócios, o autoconhecimento nos leva a uma vida mais plena, justa e confortável do ponto de vista espiritual e social. Só através do autoconhecimento é que conseguiremos identificar os tais pontos de rutura, as situações quotidianas que retiram a pureza das crianças, impondo-as as impurezas dos adultos. Ao conhecer e corrigir nossos defeitos, vícios e certos costumes, saímos da zona do «pré-juízo», passamos para a zona do juízo (onde nada se ganha e nada se perde), para só então avançarmos finalmente para a riqueza espiritual. Daí sim chegaremos ao céu.