Opinião: Marcos Leite | Sobre o cuidado
Por Jornal Fórum
Publicado em 04/10/2025 07:30
Opinião
 

 Dizia Buda que "os insensatos abandonam-se sem esforço à negligência enquanto os sábios têm a vigilância como o seu maior bem". O bom e velho orai e vigiai. Porque tem horas em que oramos mais e noutros momentos vigiamos mais. As duas coisas ao mesmo tempo eu nunca consegui. É uma ou outra. Só não pratica a oração quem não tem fé. Há sempre alguém que julga não precisar dela. Já a vigília, duvido que alguém prescinda, a não ser os insensatos. Orar e vigiar é como o ba-loi-ço-do-mar, assim mesmo, como quem soletra so-le-ne-men-te, no tradicional movimento cistólico diastólico. Vigiar, zelar, cuidar. Palavras que resumem o acto de proteger aquilo que mais amamos, nossa família e nossos amigos. 

Raramente encontramos alguém que atravessa a estrada da vida sem semear e cultivar amizades. Afinal, a vida no deserto é quase impossível, além de triste. Viver assim, sem ter amigos, é como um agricultor que mantêm as sementes armazenadas no galpão com medo de perdê-las. Mas engana-se quem compara as amizades às simples brotações. Plantar amigos não é como cultivar cereais. Amigos não servem para matar a fome. Eles são como as árvores. À medida que cresce (a amizade), aumenta o vínculo. Os cereais não. Para terem alguma «utilidade», é preciso ceifá-los enquanto as amizades precisam apenas de cuidado. Confundir amigos da vida com amigos do facebook ou das redes sociais é como tratar uma árvore pensando apenas na sua utilidade física. 

Ao nascer uma amizade não sabemos quanto tempo irá durar, tampouco se será para sempre ou enquanto for possível. São factores que só o tempo irá dizer, mas que podem conduzir-nos para uma certa zona de conforto. Afinal, amizade é liberdade. É só depois de alguns anos, depois de reiteradas trocas fraternas é que percebemos que aquela pequena semente floresceu, buscou a luz, deu boa sombra, bons frutos e nem sabemos quão profundas estão as suas raízes, quão longe foi esforçar-se para alimentar a empatia. Mas como todo o ser vivo, as árvores também podem ter a vida abreviada. E como é triste quando isso acontece. Mesmo assim, há certas amizades que, mesmo depois de uma despedida «para sempre», nunca cessarão. São como as belas árvores que depois de mortas servem à arte, às esculturas. Pois lá está, as raízes permanecem agarradas ao seio da terra. 

Mas é preciso estar atento ao baloiço. Entre ter muitos amigos e não conseguir cuidá-los ou ter menos amigos e mais qualidade, os sábios sempre escolhem a segunda opção. Dizia o filósofo Kierkgaard que “a porta da felicidade só se abre para fora e quem tenta abrí-la em sentido contrário acaba por fechá-la ainda mais”. A metáfora é simples. Não podemos esperar que os amigos venham bater à nossa porta, para abrirmos «para dentro». A verdadeira felicidade, emoção onipresente em cada encontro de amigos, reside em abrirmos a porta «para fora», como se fosse o nosso coração. Por isso é tão importante bater à porta dos amigos, perguntar como estão, visitá-los e, mais do que perguntar, saber realmente como estão. Dar a mão, acompanhar e também sofrer quando for necessário. 

Há poucos dias perdi um grande amigo. Partiu cedo, quando ensaiava tornar-se um admirável sábio. Para quem está acostumado a ver o mundo da «porta para dentro», sem abandonar a zona de conforto, percebe que ele deixou a esposa e o filho. Porém, quem o vê da «porta para fora», sabe que ele jamais os deixará. Donde residirá sua sublime alma, o seu apurado espírito há de transmitir a inconfundível energia do seu sorriso, que se estendia entre as colinas de suas bochechas. Um sorrido que tinha a expressão do céu azul, tão brilhante quanto o seu olhar e tão sonoro como as agradáveis palavras que entoava com o timbre o entusiasmo. Encantava pela simplicidade e inteligência incomum. Por óbvio que sentiremos muita saudade. Certeza que só tem quem teve o privilégio de estar com ele. É o que podemos chamar de sorte. Uma biografia escrita com a mais bela caligrafia. 

Quando estive no Brasil, combinamos de beber um café, encaixado entre um encontro e outro. No dia e hora marcados, lá cheguei, mas ele não apareceu. Sua memória já o traía, num sinal de avanço daquela terrível doença que atrapalhava a brilhante mente. Hoje sei. Aquele seria um encontro com cara de despedida. Mesmo tendo esquecido, seu espírito elevado me preservou, amorosamente. Quanto aos demais, suplico: abram a porta para fora. Corram saber como estão os seus amigos, os seus amores. Os amores da vida são as únicas sementes que nos será permitido levar quando deixarmos este plano. Os amores e os amigos. As verdadeiras provas de que a vida valeu a pena. 

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