Opinião: Miguel M. Riscado | Democracia e maioria
Por Jornal Fórum
Publicado em 11/12/2025 08:00
Opinião

No rescaldo do misterioso 25 de novembro, achei por bem revisitar alguns debates, entrevistas e gravações, não só da época, mas da perspetiva ulterior de alguns dos seus intervenientes diretos. Um desses intervenientes que mais contribuiu para clarificações sobre as ocorrências desse dia é Zita Seabra. Ouvir a narração de um (ex) membro do Partido Comunista de maneira tão aberta e sem necessidade de controlo da dialética é refrescante, sem prejuízo da posição atual de “nem-nem” da interlocutora. Não importa aqui densificar o que aconteceu, nem o que foi dito, mas apenas trazer à colação um aspeto subjacente que é transversal a toda a história desse dia — de outros dias também, como o 11 de março, por exemplo. Falo do simples facto da completa desvalorização da vontade da maioria. Quando se tenta partir para insurreição popular armada, para qualquer golpe de estado, a questão da maioria importa apenas num aspeto: ter cinquenta por cento mais um das armas, dos exércitos, dos centros de poder. Mas obviamente uma democracia não funciona assim. O conceito de maioria a que estamos acostumados é o da maioria da capacidade eleitoral ativa: maioria dos votos, maioria dos mandatos, maioria dos lugares. A democracia representativa é uma democracia de imagem: a eleição dos titulares é o espelho da vontade dos eleitores. Parece, assim, estar explicada a nossa democracia. Mas esta visão é extremamente simplista, além de dogmaticamente errada.

A nossa Lei Fundamental, a Constituição de 76, com as várias revisões subsequentes, limita a vontade da maioria, garantido que esta nunca suprime os direitos, as liberdades e as garantias dos seus concidadãos. O próprio documento estabelece limites à revisão constitucional. A ideia é a de que a maioria mandará dentro dos moldes definidos pela Constituição e apenas com base nessas “regras de jogo”. Não é aliás normal, nem espectável, que a vontade de uma maioria possa ser imposta tout court. A democracia não é apenas a maioria; ainda que essa seja o critério predominante. Cria-se assim uma aparência sacrossanta da votação — parece que este instrumento é a manifestação da vontade mágica ou divina da maioria. Não pode, evidentemente, ser apenas assim — o terror de Robespierre explica bem o porquê. Mas a democracia desgasta-se rapidamente, precisamente pela impaciência da maioria e pelo desrespeito pela minoria. Estes grupos são constantemente mutáveis e a lei demonstra apenas uma inscrição de um determinado grupo, num determinado momento — lembrando Hobbes, é uma moral do passado.

O que nunca me tinha ocorrido, mesmo conhecendo as realidades semitas, romanas, feudais e comunistas, era o facto de, num momento tão próximo (50 anos), ainda persistir esta ideia: a maioria não interessa para nada. Já vimos que não pode ser apenas ela…mas não interessar de todo é uma ideia assustadora e fascinante. Voltando a Zita: esta lembrava o momento em que a revolução de Novembro teve de ir para a cama. A razão: não havia armas, os militares não eram cinquenta mais um. O PCP desistiu nesse dia, com a condição de que não seria ilegalizado, de intentar a revolução popular. Assim, se já havia uma minoria, com a desistência do PCP, esta encolheu ainda mais. Mas isso não impediu Otelo de continuar, nem as FP-25; em Espanha, noutros contextos, isso não impediu a ETA de continuar. Isto é, a existência de armas era a condição necessária para a continuação do conflito. Havia clandestinidade e segredo. Hoje as armas são outras.

Hoje, as minorias que tentam controlar e afastar totalmente as maiorias são as oligarquias tecnológicas. Só assim se consegue justificar a ascensão de indivíduos como Peter Thiel ou Elon Musk na política internacional. A obsessão destes tecnocratas é, como também o é na contagem de armas, a eliminação da condição humana do adversário. Mas esta neo-luta é pior: antes havia armas dos dois lados; agora, a fortuna sem fim, o controlo marionético dos políticos de fachada e a impunidade autêntica, colocam a maioria universal humana dependente e submissa destes fantasistas. A democracia deve ser repensada, sob consequência de deixar de existir e se tornar apenas, como ocorre nos totalitarismos, num exercício de show retórico; mas a maioria não pode ser o critério de fina flor, sob pena de sermos numeralizados, negando a dignidade de cada ser.

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