Opinião: Paulo Lopes | Conto de Natal
Por Jornal Fórum
Publicado em 18/12/2025 08:00
Opinião

Acabara de descer as escadas do prédio quando, hesitando por um momento, se interrogou: “Será que vale a pena?”. Uma breve pausa, muito breve, e, decidindo-se, abriu a porta. Aconchegou o cachecol, levantou as golas do sobretudo e embrenhou-se na noite gélida. Procurou acelerar o passo para vencer o frio cortante, embora soubesse que tal não seria fácil, nem vencer aquele ar polar que vinha do alto da Serra, nem apressar o passo, pois, já perto dos oitenta, o despacho de outros tempos e a segurança na passada já não eram os mesmos. Mas não podia faltar, não queria faltar à Missa do Galo.

                O Natal ainda tinha para ele um cunho especial. Como católico esclarecido que procurara ser durante grande parte da sua vida, sabia que esta não era a maior festa do Cristianismo, embora fosse a mais vistosa, porventura, a mais massificada e, por certo, a mais aprisionada dos ventos mercantis que sobre ela se abatiam, procurando expurgá-la de qualquer espiritualidade, fazendo com que esta fosse substituída por um manancial de apelos afectivos que a transformavam num conjunto que mesclava recordações quase colectivas de infâncias estereotipadas com apelos descarados a um consumismo exacerbado que se iniciava cada vez mais cedo no calendário.

                Mesmo assim e apesar disso, ele teimava em viver um Natal próximo da sua essência. Sabia que era difícil, mas tentava. Cada vez mais se sentia compelido a isso à medida em que via a vulgarização do Natal e até mesmo a sua obliteração caminharem a passos largos, como vagas de fundo, que vinham a contento de uma população cada vez mais esquecida e distraída do significado do nascimento de um menino em Belém da Judeia. Ficara estupefacto quando soubera que, em França, já não se podia chamar “Mercado de Natal” ao … mercado de Natal. Agora era “Mercado de Inverno” para não ofender … “Mas não ofender a quem?”, perguntava-se e perguntava aos seus mais próximos, recebendo respostas evasivas ou silêncios embaraçados.

                Sentia que tinha de teimar, até ao seu último suspiro, embora lhe parecesse uma luta inglória. Conseguia escapar à sensação de que tentava parar os ventos da História com as mãos apenas porque era um homem de fé.

                “Ups!”, escorregara. Já se instalava uma fina camada de gelo sobre os paralelos, transformando a cacimba que começara a formar-se assim que se pusera o Sol. Tinha de ter mais cuidado. De pouco adiantaria ir mais depressa se fosse para ficar estatelado no chão.

                O que verdadeiramente o deixava fora de si era o discurso dos pobrezinhos que vinha sempre nesta altura, tão certo como as castanhas no S. Martinho, celebração e memória já completamente ofuscadas por tantas árvores, decorações, iluminações de Natal e músicas natalícias presentes um pouco por todo o lado, levando-o a sentir-se quase nauseado com tudo isso. Felizmente que pertencia à Paróquia de S. Martinho e, por isso, sabia que teria sempre a festa do santo padroeiro com as castanhas, a jeropiga e a quermesse acompanhadas de todos aqueles sorrisos e boa disposição de tantos paroquianos que se reuniam com alegria.

                Curiosamente, ele sentia que a festa do S. Martinho com a história da divisão da capa em duas partes era um bom prenúncio para o Natal, para um apelo à solidariedade e à construção de um mundo melhor, mas tal não se enquadrava em gestos avulsos das figuras políticas que, nas televisões, iam dar uma ajuda no Banco Alimentar ou cear com os sem-abrigo, na certeza de que a dois de Janeiro, o Mundo continuaria na mesma.

                Ainda por cima, ele gostava mesmo do Natal e das celebrações com a sua família. Agora já celebrava o Natal à vez em casa das filhas e no enlevo da companhia dos netos, mas preferia, a contragosto destas, aparecer apenas para o almoço de Natal. No que se referia a esta noite, tinha-lhes pedido que o deixassem estar em casa a descansar, pois argumentara que sair à noite com estes frios não lhe faria nada bem. Estas aquiesceram, imaginando-o aconchegado na manta, com o aquecedor a óleo junto ao sofá onde adormeceria a ver televisão.

                Assim acontecera, mas despertando com dores no pescoço por se ter deixado dormir um pouco torcido, levantou-se, fez alongamentos, bebeu um chá que aqueceu no micro-ondas e, sentindo-se melhor, olhou para o relógio, pensando: “Ainda dá”. Pegou no cachecol e no sobretudo pois tomara a resolução de ir à Missa do Galo. As filhas é que não podiam saber. Felizmente que o pároco de S. Martinho marcara a missa não para as vinte e duas horas como já costumava ser prática em muitos lados, mas sim para a meia-noite, dizendo com certa graça que “Era a Missa do Galo e não a missa da galinha”, provocando risos na assembleia dominical.

                Uma súbita rajada de vento fê-lo duvidar da sua precipitada decisão, até que ponto fora prudente, mas agora já estava, não iria voltar para trás. Foi-se aproximando cuidadosamente da porta da igreja, não fosse escorregar outra vez naquela rua inclinada. Aí, já o madeiro ardia e alguns homens conversavam e um ou outro fumava o último cigarrito antes de entrar. Foi recebido com gestos calorosos e apertos de mão seguidos de alguns conselhos por quem se importava com o seu estado de saúde e o seu conforto. “Apre que está frio, vizinho”, disse um. “Não será melhor abrigar-se?”, disse outro. Ele agradeceu. Sabia que eles estavam genuinamente interessados no seu bem-estar. Fez menção de entrar acelerando o passo, desta vez de forma segura, animado pelos cânticos que o grupo coral entoava num último ensaio antes do início das cerimónias. Deu mais umas passadas entrando num templo cheio de luz e música onde as pessoas se iam sentando, cumprimentando-se com um olhar, um aceno breve ou mesmo ficando ainda a trocar algumas palavras gentis entre si.

Sentiu-se integrado, sentiu-se parte daquela comunidade, daquele ambiente especial e viu-se a dizer a meia-voz de si para si: “Ainda bem que vim”. Avançou mais um pouco e, sentando-se, deixou-se envolver pela magia do Natal que ele julgava quase perdida.

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