Eis um livro que ainda não li. Portanto, não teria direito à licença poética. Talvez, nem a tenha depois de lê-lo. Isto, é claro, se não faltar-me a visão, a capacidade de enxergar. Bem-dizia um poeta da minha terra, «o pior cego é aquele que não quer ver». Embora não seja uma sentença de sua autoria, Mário Quintana referia-a em seus textos e poesias. Como Saramago, entendia que a miséria reside na falta de empatia, na incapacidade de enxergar o outro, o que torna o humano um ser onde a sensibilidade dá lugar aos sentimentos egoístas, cuja miopia só permite enxergar as coisas pequenas e irrelevantes que alimentam o ego.
Mas a cegueira que leva-me ao acto de pensar é outra, menos relevante do que a descrita pelo poeta, mas, de certa forma, inquietante, para não dizer revoltante. Bem ao encontro do sentimento que teve José Saramago ao escrever esta sofrida obra, publicada há trinta anos. Portanto, refiro-me ao comportamento humano enquanto leitor, consumidor de livros ou mesmo de jornais impressos, como este aqui, que dá espaço para que as ideias possam sair das cabeças e provocar quem as lê. Eis a razão do termo «ensaio», vez que a ideia deste texto não é afirmar nada, mas sim levantar questões.
O leitor já deve ter reparado como agem as pessoas cultas, que leem Saramago, que apreciam literatura ou mesmo qualquer outro tipo de livro. Elas costumam ser chatas, não é mesmo? Mas tenha calma, caro leitor! Também me enquadro neste grupo dos chatos. Afinal, é mesmo um privilégio ser um chato. Sem a preocupação de precisar agradar aos outros, buscar o caminho da integridade torna-nos realmente livres e muito menos manipuláveis. E queres saber por que somos chatos? Por uma questão meramente física. Por que somos esmagados, achatados pelo peso de uma sociedade que corre em busca do consumo e pressiona para uma satisfação constante de instintos e prazeres, que convenhamos, nunca parecem suficientes.
Então, já que somos poucos – os que leem – acabamos por tornar-nos seres estranhos à maioria. Viramos os tais «pontos fora da curva», como se em um modelo de dispersão, desses utilizados pela estatística para provar a existência ou correlação entre as coisas, fôssemos aquela sujeira que surge no desenho, a resposta que questiona, a pequena núvem cinza do céu, que só é notada quando ousa interromper os raios solares. Os incautos sempre as veem assim e questionam: se o tempo não está para chuva, o que faz uma nuvem dessas a atrapalhar o meu sol?
E já que falei em Saramago, dei sim uma espiadela no que diz a obra. Não li, repito! Confesso, fui ao Google. A exemplo dos ensaios, o pouco que meus olhos permitiram ver fez-me pensar que a cegueira descrita por Saramago possa ser o advento da internet. É uma boa comparação. Uma boa hipótese. É curioso lembrar que o lançamento desta obra coincide exatamente com o início da operação da rede mundial de computadores. E foi, e é, justamente esta nova forma de trocar ideias, de comunicação, que tem tornado as pessoas cegas. Basta observá-las nas ruas, nos autocarros, no sinal vermelho. Estão todas «conectadas», abduzidas por seus telemóveis, actualizando e buscando saber o que há de novo nas redes sociais. É o novo que fica velho num segundo e que já dá lugar a outra novidade, numa interminável sucessão. Uma infinidade de informação a ocupar memória, a serviço de transformar pessoas em seres autómatos.
É óbvio que existem infindáveis benefícios na conectividade. Isso é inquestionável. O que sim, deve ser constantemente questionado é a forma como as pessoas consomem tudo isso e o tempo que dedicam às telas. Não fosse tão prejudicial as escolas não estariam preocupadas em banir os telemóveis das salas de aula. Enquanto nasce um Saramago a cada um milhão de pessoas, o que torna o dom da escrita uma espécie de «doença rara», sob a ótica matemática, todo o restante se torna «actor» e não «autor», quer pelo conteúdo que torna público nas redes sociais, quer por aquilo que é consumido a partir de um algorítimo viciante, numa espiral como aquelas utilizadas para ensacar enchidos.
Feitas estas considerações, para que o leitor possa entender a licença poética, ainda que indevida, entende-se porque as pessoas não leem mais. Quiçá, no fundo, a leitura não dá «likes», não dá engajamento, não insere-te nesse universo de pessoas sem senso crítico. Pensemos ao contário, num exercício de empatia. Imagine uma pessoa que muito lê e que fica cega, de facto. Não seria um castigo? Não seria revoltante? E quando o leitor esquece-se de onde deixou os óculos? Tudo pronto para aquele momento íntimo, a casa calma, o silêncio, a luz de leitura, a poltrona, o pufe para apoiar os pés, o sujeito pega o livro e quando acomoda-se, não encontra os óculos. Que sensação terrível, não? É uma cegueira temporária, sim, que demonstra quão importante é o sentido da visão para quem realmente quer ver.
Ser leitor é ser minoria e as minorias parecem não ter importância, senão aos políticos de plantão. Aqueles que jamais lutam contra as causas que afligem as minorias, sob o risco de perder a razão de lutar. Afinal, o que seria de um político que diz combater a miséria se esta simplesmente acabasse? Que bandeiras passaria a adotar? E daqueles, que por não ler direito confundem cidadania com hambúrguer? Estas são opiniões complexas, por vezes polémicas, que só se consegue sanar se tivermos a capacidade de ler, estudar e entender como funcionam os dois lados. O bom e velho contraditório. Então, para que eu possa dormir eivado do mais puro sentimento de dever cumprido, fiz este texto, chato, como deve ser, bem como são os leitores, essa gente esquisita que pega nos livros enquanto uma multidão anda por aí «conectada» e controlada por aqueles que as manipulam em nome da nossa liberdade.