Tratava-se de cadernos felpudos, cadernos às cores, com linhas e sem linhas. Tratava-se de cadernos brilhantes, cadernos sem defeitos e com bastante personalidade.
Eram cadernos vulgares e ao mesmo tempo personalizados. Pertenciam a um tempo em que os segredos cabiam entre folhas pequenas e com bonequinhos, ou simples e capa monocolor.
Por vezes, escritos com canetas coloridas, aquelas de ponta fina ou até que usávamos para pintar.
Eram associados a crianças, a adolescentes e raramente a adultos. Quiçá Bridget Jones tenha outra opinião, não fosse quase escrever novels de todos os tamanhos.
Autênticas ficções e romances, acompanhadas de vinho branco.
Ideias soltas e prosas sem fim.
Para os menos famosos, cabiam na gaveta da mesinha de cabeceira ou num compartimento do armário.
Por vezes, até debaixo da cama.
Corriam-se riscos para ficar escondido, inventavam-se palavras e até novos alfabetos para os segredos mais peculiares.
As folhas eram suaves, geralmente saudosas, começava-se geralmente por “Querido diário...”, como se o papel fosse um velho amigo.
Confidente, cúmplice e, muitas vezes, o único capaz de escutar sem julgar.
Hoje, as coisas são diferentes.
Não escrevemos diários, fazemos journaling.
O diário saiu de moda, talvez regresse um dia.
O termo chegou de mansinho, de calças justas e cheio de hashtags. Invadiu o algoritmo, glorificou as redes sociais e personalizou a romantização do pequeno-almoço.
Os scrolls ganharam vida nas inspirações criadas.
Manhãs bem-dispostas, repletas de tempo e dedicação à primeira refeição do dia.
Glorificaram-se as manhãs produtivas, os objetivos e gratificações. Recorreu-se às mudanças e a autoajuda.
Uma geração diferente, continuam os de 60/70.
O diário foi substituído por um caderno de rabiscos pré-concebidos.
As canetas outrora coloridas, agora assumem-se como canetas Bic práticas e que nunca saem de moda.
Questões a serem preenchidas e decisões a serem tomadas.
O journaling transformou a escrita íntima à prática do bem-estar. A frases curtas e diretas. A saber-se o que se quer. A decidir-se o que não nos faz falta.
Talvez... nos faça pensar um pouco, repensar a vida como ela é.
A encontrar aquela erva daninha que cresce sem se querer.
Dos diários ao journaling, um crescimento brutal. Foi a virada de uma geração.
O mais curioso disto tudo?
A folha em branco continua a ouvir tudo da mesma forma. Organiza a mente e clarifica o dia.
O vocabulário mudou, a intenção também.
O conceito de journaling não é novo, apenas vestiu roupa nova.
É a prática deliberada de escrever, ora: pensamentos, sentimentos, gratidões, metas, dúvidas, medos, perguntas.
A medicação da psicologia.
A escrita como espelho e bússola.
Um hábito que se instala devagar, como quem reaprende a habitar-se.
Há quem prefira romantizar a noite, o deitar e fechar de dia.
A decisão de esclarecer o que dia acrescentou e o que dia podia ter feito de melhor.
Eu, prefiro a manhã, mas confesso que é um hábito que se demora a conquistar.
Uns listam cinco coisas pelas quais estão gratos, outros descrevem o dia como um relato de guerra ou ternura. E todos, de alguma forma, procuram o mesmo, clareza.
O que não sabemos que temos até ser escrito.
A modernidade fez do journaling uma estética. Trends nas redes famosas, influencers a mostrar o seu tempo, cadernos minimalistas e canetas que deslizam como seda. Os bulltet points, trackers e até rabiscos artísticos. Quase que um caderno de bolso, mas guardado no canto do quarto.
Há qualquer coisa de ironicamente performativo na ideia de mostrar o íntimo, mas isso é outra crónica.
Ainda assim, por trás do filtro sépia, há autenticidade, uma geração inteira que procura sentido com uma frase de cada vez.
Talvez seja a salvação da escrita à mão. O gesto é o mesmo.
Escolher o silêncio de uma página em branco no meio de um mundo que grita.
O nome é que é diferente.
Deixamos de chamar-lhe diário, mas talvez nunca tenhamos deixado de o escrever.
No mundo moderno é journaling.
Journaling, portanto, é algo pessoal. Assume-se como uma escrita que nos devolve a nós mesmos. Uma prática silenciosa, mas poderosa, onde cada palavra dita o que o corpo ainda não soube dizer.
Não deve ser encarado como uma obrigação.
Afinal, continuamos a escrever para compreender.
