Opinião: Teresa Inácio | Do Diário ao Journaling
Por Jornal Fórum
Publicado em 15/10/2025 10:48
Opinião

Tratava-se de cadernos felpudos, cadernos às cores, com linhas e sem linhas. Tratava-se de cadernos brilhantes, cadernos sem defeitos e com bastante personalidade.  
Eram cadernos vulgares e ao mesmo tempo personalizados. Pertenciam a um tempo em que os segredos cabiam entre folhas pequenas e com bonequinhos, ou simples e capa monocolor. 

Por vezes, escritos com canetas coloridas, aquelas de ponta fina ou até que usávamos para pintar. 

Eram associados a crianças, a adolescentes e raramente a adultos. Quiçá Bridget Jones tenha outra opinião, não fosse quase escrever novels de todos os tamanhos. 

Autênticas ficções e romances, acompanhadas de vinho branco.  

Ideias soltas e prosas sem fim. 

 Para os menos famosos, cabiam na gaveta da mesinha de cabeceira ou num compartimento do armário.  

Por vezes, até debaixo da cama. 

Corriam-se riscos para ficar escondido, inventavam-se palavras e até novos alfabetos para os segredos mais peculiares. 

As folhas eram suaves, geralmente saudosas, começava-se geralmente por “Querido diário...”, como se o papel fosse um velho amigo.  
Confidente, cúmplice e, muitas vezes, o único capaz de escutar sem julgar. 

Hoje, as coisas são diferentes.  

Não escrevemos diários, fazemos journaling. 

O diário saiu de moda, talvez regresse um dia.  

O termo chegou de mansinho, de calças justas e cheio de hashtags. Invadiu o algoritmo, glorificou as redes sociais e personalizou a romantização do pequeno-almoço. 

Os scrolls ganharam vida nas inspirações criadas.  

Manhãs bem-dispostas, repletas de tempo e dedicação à primeira refeição do dia. 

Glorificaram-se as manhãs produtivas, os objetivos e gratificações. Recorreu-se às mudanças e a autoajuda. 

Uma geração diferente, continuam os de 60/70. 

O diário foi substituído por um caderno de rabiscos pré-concebidos. 

As canetas outrora coloridas, agora assumem-se como canetas Bic práticas e que nunca saem de moda.  

Questões a serem preenchidas e decisões a serem tomadas.  

O journaling transformou a escrita íntima à prática do bem-estar. A frases curtas e diretas. A saber-se o que se quer. A decidir-se o que não nos faz falta. 

Talvez... nos faça pensar um pouco, repensar a vida como ela é. 

A encontrar aquela erva daninha que cresce sem se querer. 

Dos diários ao journaling, um crescimento brutal. Foi a virada de uma geração.  

O mais curioso disto tudo? 

 A folha em branco continua a ouvir tudo da mesma forma. Organiza a mente e clarifica o dia. 

O vocabulário mudou, a intenção também. 

O conceito de journaling não é novo, apenas vestiu roupa nova. 
É a prática deliberada de escrever, ora: pensamentos, sentimentos, gratidões, metas, dúvidas, medos, perguntas. 

A medicação da psicologia. 

A escrita como espelho e bússola.  

Um hábito que se instala devagar, como quem reaprende a habitar-se. 

Há quem prefira romantizar a noite, o deitar e fechar de dia. 

A decisão de esclarecer o que dia acrescentou e o que dia podia ter feito de melhor.  

Eu, prefiro a manhã, mas confesso que é um hábito que se demora a conquistar. 

Uns listam cinco coisas pelas quais estão gratos, outros descrevem o dia como um relato de guerra ou ternura. E todos, de alguma forma, procuram o mesmo, clareza. 

 O que não sabemos que temos até ser escrito. 

A modernidade fez do journaling uma estética. Trends nas redes famosas, influencers a mostrar o seu tempo, cadernos minimalistas e canetas que deslizam como seda. Os bulltet points, trackers e até rabiscos artísticos. Quase que um caderno de bolso, mas guardado no canto do quarto.  

Há qualquer coisa de ironicamente performativo na ideia de mostrar o íntimo, mas isso é outra crónica. 

Ainda assim, por trás do filtro sépia, há autenticidade, uma geração inteira que procura sentido com uma frase de cada vez. 

Talvez seja a salvação da escrita à mão. O gesto é o mesmo. 

Escolher o silêncio de uma página em branco no meio de um mundo que grita. 

O nome é que é diferente. 

Deixamos de chamar-lhe diário, mas talvez nunca tenhamos deixado de o escrever. 

No mundo moderno é journaling 

Journaling, portanto, é algo pessoal. Assume-se como uma escrita que nos devolve a nós mesmos. Uma prática silenciosa, mas poderosa, onde cada palavra dita o que o corpo ainda não soube dizer. 

Não deve ser encarado como uma obrigação. 

Afinal, continuamos a escrever para compreender. 

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