Opinião: Marcos Leite | Dois cães
Por Jornal Fórum
Publicado em 27/11/2025 11:37
Opinião

Há quem prefira os gatos aos cães. Esta é uma discussão difícil, ao menos para mim, que prefiro os cães. Nada contra os felinos, mas ainda há um quê de soberba em minh´alma que os gatos certamente seriam capazes de perceber. E uma vez que percebam, deparo-me com meu medo de rejeição. Ser rejeitado por alguém até vai, mas por um gato de estimação, eu realmente não estaria preparado. 

Os cães sempre tiveram um papel importante em minha vida. Desde criança que convivo com eles. De certo modo, relacionam-se na minha existência mais ou menos como as copas do mundo. Fracionam, dividem em partes, pedaços de uma vida, sempre a facilitar os resgates da história. É como um truque ou um antídoto para quando a memória, por um acaso, se desconectar do meu presente. E que isso nunca aconteça! 

Diferente dos brasileiros, os portugueses não usam o termo «expectativa de vida» quando estatisticamente referem-se a quantidade de anos que uma pessoa pode viver. Trocam a expectativa pela esperança. Parece mais interessante. A «esperança» nos faz crer que faremos parte da própria caminhada. É algo que indica que poderemos ser protagonistas. Por outro lado, o termo «expectativa» aduz algo a que vamos assistir, não mais como actores, mas como expectadores. Quem estará certo, não sabemos. Talvez um pouco dos dois seria o ideal. 

Há quem na velhice não mais queira ter animais de estimação, o que pode ser um erro. Quando um idoso desiste de cuidar, nem que seja de um cão, passa a precisar de cuidados. Embora não tenha lógica, acontece, o que torna esta escolha uma decisão perigosa. Bem cuidado, um cão de pequeno porte pode viver cerca de quinze anos. Ao considerarmos uma esperança de vida de oitenta anos, tirando alguns intervalos, podemos ter cerca de cinco cães a marcar nossa história. Parece pouco, mas essa quantidade diminui à medida que envelhecemos.  

Resisti muito em ter novamente uma companhia canina. Muito por conta de ter deixado meus cães no Brasil, o que é sempre traumático. Mas acabei rendendo-me e a Nera chegou à nossa casa em agosto. Num desses dias frios da Covilhã, com direito à geada, caminhava com ela enquanto escutava o podcast do Júlio Machado Vaz que falava sobre o luto. No contexto, o psiquiatra explicava as variações deste sentimento, quando falou da perda dos animais, que há alguns anos era motivo de chacota. Na infância, foi o maior luto que vivi. Acabei então por pensar que, do alto dos meus cinquenta e um anos, devo velar minha cachorrinha por volta dos sessenta e seis anos e, depois disso, terei chance de cuidar de apenas mais um ou dois cães, se a Divindade permitir, é claro. Depois disso, será tudo lucro, ou puro prejuízo. Não há como saber. 

Embora a tal da terceira idade esteja um pouco distante de mim, nunca esteve tão próxima. É paradoxal como o tempo. Mas afinal, onde é que quero chegar com essa conversa toda? Por mais que fuja, acabo sempre nela, nessa tal de finitude. Por outro lado, dar-se conta de que o tempo passa, que os músculos enfraquecem, que a memória falha e que os cães são sempre adoráveis, faz com que sinta-me vivo, entusiasmado com uma manhã fria, com aquele vapor que sai das narinas enquanto a ponta dos dedos e do nariz endurece com o frio. É como se pudéssemos congelar outras coisas para a eternidade. Coisas que só mesmo as manhãs frias, a caminhada emparceirada com o cão e o tempo que tiramos «para dentro» é capaz de produzir. Talvez, o verdadeiro sentido de gratidão. 

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